sexta-feira, 1 de abril de 2011

FENOMENOLOGIA HILÉTICA E FENOMENOLOGIA MATERIAL

FENOMENOLOGIA MATERIAL

MICHEL HENRY
 A – No primeiro estudo, "Fenomenologia hilética e fenomenologia material" (pp. 13-59), com alguma inspiração heideggeriana, chama-se à atenção para a novidade que a fenomenologia material confere à fenomenologia clássica. Partindo de uma reflexão sobre o tempo (pois é este o único modo de pesar o como da manifestação da consciência ela mesma), atinge-se a principal questão da afetividade pura, na sua ipseidade de um pathos acósmico. As Idéias Diretoras para uma Fenomenologia, nomeadamente os §§ 851, 862 e 973 , e as Lições para uma Fenomenologia Interna do Tempo", de 1905, são os textos que vamos abordar neste ensaio. Do § 97, retoma Michel Henry a pista que conduz à conceptualização do tipo de fundação existente entre os planos noético e noemático - ponto chave da sua reflexão. 

A ciência noética e uma disciplina científica investiga a natureza e potencialidade da consciência, indicando os múltiplos métodos do conhecimento, incluindo a intuição, o sentimento, a razão e o sentidos.
A ciência noética explora o mundo exterior da mente (da consciência, da alma vivente, do espírito) é como se relaciona com o universo físico.

A palavra “noética” vem do grego “nous”, mas não temos o equivalente em português. Noética se refere ao “conhecimento interno”, uma espécie de consciência intuitiva de acesso imediato ao conhecimento e mais além do que está a disposição de nossos sentidos normais e o poder da razão.

O que é Ciências Noéticas? Ciências Noéticas são as explorações da natureza e o potencial da conciência mediante multiplas formas do conhecimento. Ciências Noéticas explora o “cosmos interno” da mente (conciência, alma vivente,espírito) e como se relaciona com o cosmo se relaciona com o cosmo exterior do “mundo físico”.

O verbo grego νοέω (infinito, νοεῖν) significa, “ver, discernimento” – a diferença do mero, “ver” – e, de tem que, “pensar”. Entre os filósofos gregos foi comum usar para designar um, “ver inteligente”, o “ver pensante”, que é ao mesmo tempo um, “instruir”. Algo é objeto de νοεῖν de quando se aprende direta e infalivelmente tal e qual é. Para Parmênides, esta apreensão direta e infalível do que é, como é, quando se identifica com o ser, segundo se expressa a famosa tese:  το γαρ αυτό νοεῖν ἔστιν τε καὶ είναι, que se traduz a míude, é o mesmo que pensar no ser. Para que algo seja objeto de νοεῖν é preciso que seja inteligível. O substantivo correspondente a νοεῖν, “nous”. “Nous” de Aristóteles, designa como a doutrina da inteligência (do intelecto, do entendimento).

Há que encontrar o "resíduo fenomenológico" fruto de uma "redução radical de toda a transcendência que liberta a essência subjacente da subjetividade" (p. 15),  da qual resulta para o autor a própria fenomenologia material chamando-se a atenção para a "estranha indecisão" de Husserl acerca do lugar próprio para tematizar sistematicamente a clivagem entre a matéria e a forma.

Existe neste conjunto de ensaios um constante retorno à obra de Husserl, citando-o sistematicamente de modo a deixar transparecer, nessas citações, as "estranhas indecisões", "absurdos", "aporias", incompletude completudes, incertezas e contrariedades no pensamento deste grande gênio da filosofia. Mas o autor admite, apesar de tudo, que alguns dos problemas por si levantados não o seriam para Husserl, nomeadamente o "problema fundamental da unidade intra-consciencial dos componentes hiléticos e intencionais do vivido", na sua relação com a subjetividade absoluta (p. 18), este primeiro ensaio vive essencialmente de uma tremenda crítica (construtiva) ao filósofo. Por outro lado, M. Henry, num estilo muito próximo do de Husserl, e com uma linguagem clara e objetivo (tanto quanto o próprio texto husserliano o permite!), vai aproveitando o modo como este torneará muitas das questões levantadas e supostamente sem resolução.

O esforço brutal da fenomenologia husserliana, brutal porque "inconsciente", teria sido a interpretação do "poder da revelação do impressional e do afetivo como tal" (p.22) na sua relação com a intencionalidade (já que a afetividade fundadora é a atividade intencional).

Com efeito, toda a relação entre a data das sensações (que a fenomenologia hilética tematiza) e a descrição dos diversos tipos de noeses e de noemas que correspondem aos modos essenciais da fenomenologia transcendental (intencional), é desenvolvida nesta obra segundo uma conexão e coerência expositivas possíveis, se tomarmos em linha de conta que o tratamento das realidades que a compõem tenta superar a dificuldade de uma exposição fragmentada, embora, no seu todo, constituam o assunto de trabalho deste professor da Universidade Paul Valéry, em Montpellier.

As “Ideen I”, teriam deixado por resolver a questão de como as data das sensações são eles mesmos dados (p.27). E isso pela "incontestável depreciação" dada ao conceito de ulh e à própria fenomenologia hilética. Para semelhante problemática seria considerada necessária uma reflexão acerca das "profundezas da última consciência que constitui o tempo", nas palavras de Husserl (p.30).

As Lições de 1905, sobre a questão do tempo, "e sem dúvida o mais belo texto da filosofia deste século" (p.31), pretenderão alcançar, num gigantesco esforço, uma filosofia da arqui-constituição, correndo no entanto o risco de perder o "Essencial" e a própria fenomenologia hilética. Será a propósito do tempo que a fenomenologia husserliana irá conhecer, em presença da Impressão, o seu mais espetacular e decisivo prejuízo. De fato, o princípio que faz ver ou revela originalmente a intencionalidade a ela mesma é a própria impressão. Daí a hilética ser tão necessária como a própria fenomenologia, já que a primeira não poderá tão-só reduzir-se a uma mera disciplina ôntica subordinada à fenomenologia transcendental - "a consciência é impressional": eis a tese que demonstra bem que a consciência se encontra impressionalmente afetada e que é ela mesma a impressão, isto é, a fenomenalidade pura como tal.

M. Henry quer denunciar a "ambigüidade intrínseca desta consciência originária" (p.35) que, não obstante ser uma impressão, não é esta que a realiza, pois, é a própria percepção que o faz, que dá o sendo, realmente (p.36 e ss.). Assim nos surge (ironicamente...) a necessidade de certa falibilidade ou nadificação ontológica da consciência originária, que as Lições tentaram esconjurar. Eis o que nos leva a uma das aporias husserlianas, já que a fenomenologia do tempo é, precisamente, uma fenomenologia da impressão. E toda a ulterior fenomenologia não dirá alguma coisa mais: toda a arqui-presença, enquanto arqui-revelação, se realiza enquanto impressão: é a "fonte originária de toda a consciência e de todo o ser" (citando Husserl, p. 47). Segundo o autor esta última questão parcial faz ver o "gênio de Husserl", ao perceber as dificuldades internas do seu pensamento.

Resta-nos a essência, quando a sensação originária foge. Resta-nos a "auto-afecção da vida" (vida da consciência intencional portanto). A temática da vida (p. 54 e ss.) será retomada no último estudo, nomeadamente na Parte 2: "Para uma fenomenologia da comunidade". O continuum da vida é o pathos da vida, a sua "carne". Conclui Michel Henry: “‘Matéria’, para a fenomenologia material compreendida na sua oposição decisiva à hilética, nada indica mais da fenomenalidade do que a sua essência. É deste modo que a fenomenologia material é a fenomenologia no sentido radical [...]" (p. 58).

MÉTODO FENOMENOLÓGICO

Edmund Husserl
 B – O segundo estudo desta obra, "O método fenomenológico", mantém o tom crítico-construtivo anteriormente anunciado. Tomando como texto de referência as Lições de 1905, proferidas por Husserl na Universidade de Götinggen, a questão orientadora é a seguinte: até que ponto os conceitos de método e de fenomenologia se devem associar?

Aproximando-se Husserl de Descartes pretende o autor recuperar o espírito husserliano de rejeição de toda a tradição, projetado a fundação do conhecimento. 

A esta questões, nos é impossível responder neste momento. Se fazemos retorno à fenomenologia histórica, compreendemos porque. Precisamente porque ela deixou indeterminadas as pressuposições fenomenológicas sobre as quais ela repousa. Porque o aparecer em direção ao qual convergem tais pressuposições não foi objeto de uma elucidação levada até o final. Do que necessita, é de um desnudar daquilo que, no aparecer, chamamos sua matéria fenomenológica pura ou ainda sua carne incandescente, aquilo que nele brilha ou incandesce. Ou todavia esta matéria incandescente não se presta a nenhum "desnudar", a nenhuma "evidência" - ao "ver" de nenhum pensamento?
 
No entanto, fundar o conhecimento é um objetivo que se delimita num círculo (vicioso), já que cada fundação é ela própria um conhecimento (duvidoso). Mas Husserl ter-se-á libertado desta aporia recorrendo ao argumento cartesiano da dúvida que não permite duvidar dela mesma. Partindo da "visão pura" ["vue pure"] do cogitatio, que lhe permite à partida ser um dado absoluto, M. Henry anuncia a absurdez dessas cogitatio real: "ela apenas é na medida em que é submetido a um olhar, a um ato de ver puro" (p.64), o que a torna dependente não dela própria mas de outro que a dá puramente. Esta absurdez determina por sua vez outra aporia que remete o puro ato de ver para o mesmo estatuto que a própria cogitatio, identificando-os.

Doutro modo, "como fundar a existência da cogitatio a partir de seus dados em pessoa numa visão pura, se esta última pressupõe esta existência prévia do cogitatio?" (p.66).

Daqui resultaria uma série de erros dos quais M. Henry considera a fenomenologia histórica uma vítima, principalmente pelo seu recurso a Descartes, na "aberrante" interpretação de que o cogito é a primeira evidência pura; o que conduz a outro erro histórico, ao erro fundamental de Husserl: ao ter deslocado a cogitatio para o campo do "olhar do pensamento" ["regard de la pensée"] fê-la com isso desaparecer em vez de a transformar num dado absoluto. Mais, Husserl confundirá ainda o ver e o visto e a própria cogitatio, que nenhuma relação tem com os dois, a primeira "omissão teórica" das Lições (p. 68).

A crítica completa-se pelo recurso ao “§ 7 de Sein und Zeit”, quando admite que a condição para que algo seja “fenômeno-objeto” de tratamento fenomenológico é, precisamente, "algo que não se mostra", permitindo perceber que o processo de pensamento não se pode tomar pelo processo da realidade. O próprio Husserl se terá interrogado sobre a possibilidade de uma reflexão sobre a redução, sobre o fenômeno puro reduzido. Com efeito, a própria reflexão só é possível pela retenção o dado é o pré-dado: o que se "vê" encontra-se "lá já" para se poder abrir a um eventual olhar (p.71).

São estas dificuldades que originam uma "perversão dos conceitos fundamentais da fenomenologia", por exemplo, o conceito de imanência (da cogitatio) que Descartes pensa sob o nome de idéia; a donação de si ("selbstgegebenheit"); ou a ipseidade.

Mas o filósofo "foi mais longe que todos os outros autores contemporâneos" (p. 75), pois nunca duvidou que a cogitatio tinha uma realidade própria, mesmo que algo indeterminado: a realidade do "reell"4, o que remete o ser para uma subjetividade absoluta.

Mas no nosso ponto de vista, a mensagem subjetiva de Michel Henry é a seguinte: a subjetividades absoluta de uma vida invisível da consciência que faz o fenômeno ser um subjectum "retirado de" (absolutum) o real... Já que, socorrendo-se de outros autores e idéias subjacentes, M. Henry aplaude ostensivamente a viragem temática das Lições, quando Husserl renuncia a uma "pretensão ontológica ultima de dar o ser" (p.81). Resta saber, digamos assim, se Husserl tinha tal pretensão e se a tinha até que ponto, com que conseqüências? Por outro lado, a questão das essências (platônicas) está de fato subentendida no texto de M. Henry, talvez por, e faça-se justiça, ela estar também subrepticiamente admitida nos próprios textos husserlianos, coisa que Husserl talvez não tivesse conscientemente admitido mas da qual tirou dividendos para a fase mais idealista do seu pensamento.

Por isso se compreende afirmações como a seguinte: "As coisas, antes da mutação temática, são as cogitationes, depois, são as suas essências." (p. 88).

Mas como é que a essência é dada?! É dada como o olhar da intencionalidade que se dirige sobre o objeto. Mas o erro mantém-se: como já vimos, não existe alguma associação entre o ato de ver puro e a cogitatio mas, muito pelo contrário, e respectivamente, uma dissociação radical entre a doação e o dado. Tal casamento visão pura/cogitatio apenas possuiria uma significação histórica.

E por encadeamento lógico surge agora a problemática da transcendência. Aquilo que a define é o conteúdo do ato de ver puro. Daí a transposição do sentido da própria redução: já não é uma redução à imanência mas à transcendência - o que para M. Henry, revela, mais uma vez (!), o "instinto genial" de Husserl para ultrapassar as dificuldades do seu pensamento (p.97).

Substitui-se então a cogitatio singular pela essência genérica. A cogitatio não pode ser vista ela mesma tal qual é na sua imanência. Há que relegar para segundo plano a realidade da cogitatio. A conclusão é simples: o método fenomenológico substitui ("por instinto") a vida transcendental pela sua essência, já que a primeira não é passível de um ato de ver puro; falta agora cumprir a teoria das essências genéricas pelo desenvolvimento da redução, que permite a Assumpção de qualquer objeto (fictício, absurdo, etc.) ser dado com evidência.

Será então possível renovar o método fenomenológico e a fenomenologia, agora que o dado em pessoa da cogitatio está desfeito (p. 105). Em última instância haverá que socorrer-se, mais uma vez, de Heidegger, com o seu famoso Seminário de Zäringhen: a já histórica colocação entre parêntesis da própria consciência, pois Husserl não terá resolvido o problema de como explicar o modo de aparecer do "referir-se a" da cogitatio.

Finalmente é retomado o “§ 7 de Sein und Zeit”, o que permite a ligação do método fenomenológico à fenomenalidade grega, ao "horizonte do ser" fazendo-se a economia da redução e rejeitando a imanência da consciência apresentando deste modo o problema fundamental da fenomenologia e da ontologia, a vida. As várias alíneas deste famoso parágrafo são analisadas por M. Henry, com o intuito de mostrar que o conceito de fenomenologia deve ser tomado no seu "sentido puramente metodológico" enquanto fenomenologia descritiva da mostração direta de qualquer processo de pensamento, como o científico por exemplo (p.119). Por conseguinte, torna-se evidente a identidade da essência do fenômeno e da sua descrição, retomando-se a questão crucial do presente estudo: a identidade do objeto da fenomenologia e do seu método.

Finalmente a última aporia sob a qual se constrói o método: como é possível uma filosofia da afetividade? - assunto discutido pela primeira vez nas Lições, a quando da conexão entre a fenomenologia e a fenomenalidade pura e original da vida, algo que para o autor a fenomenologia histórica nunca desenvolveu (apesar de, dizemos nós, a última fase do pensamento husserliano se ter dedicado à temática da Lebenswelt!). O que Michel Henry não admite é que o pathos seja uma significação vazia na essência noética da cogitatio (p. 126). Também não tolera que o correlato noemático seja irreal porque posto fora da vida, não se deixando esta constituir, nesta ordem de idéias, como vida real adentro de uma dimensão ontológica específica. É então necessário conceptualizar a "visão pura" como uma modalidade da vida segundo uma auto-afecção, já que toda a realidade possível (a natureza; o "Outro"; D-us; etc.) recebe a sua efetividade de um ser situado na "Vida"), porque é que o autor utiliza as maiúsculas?!... O "Dizer" é auto-revelação patética da subjetividade absoluta. O "Verbo" que veio ao mundo é já uma indireta dimensão teosófica digamos assim (Henry recorre a autores como Jacob Boehme...), não é o verbo grego mas a "vida escondida"! (p. 131).

Ambiguamente, este texto termina com uma referência a Marx a propósito do "trabalho vivo" e da realidade econômica, e um louvor ao método fenomenológico como verdadeiro exegeta da "inteligência do mundo"...

O OUTRO

C– O terceiro estudo desta obra, "Pathos-com", que agrupa dois textos independentes, revela mais diretamente ao leitor o pensamento de Michel Henry relativamente a uma teoria da comunidade.

O primeiro texto nasce a partir de uma reflexão sobre a Quinta Meditação Cartesiana e explora a questão do outro: como me é dado o outro na minha experiência? O autor anuncia várias proposições e trata-as sistematicamente cada uma por si. Resumindo, de igual modo, a análise husserliana da experiência do outro, que "não consiste numa simples aplicação do esquema de emparelhamento associativo obtido por empréstimo ao universo da percepção" (p. 150) - avança com uma problemática fundamental (dividida por três etapas interrogativas), a saber, como explicar que o objecto não é dado ele mesmo uma vez que não é presentado mas representado (por conseguinte, é sempre outro)?

E se diferenciar a "experiência específica do outro" da "experiência perceptiva ordinária", como considerar uma experiência do outro onde a percepção não têm nenhum papel?

Citando ou parafraseando pensamentos de Kandinsky, Kierkegaard, Leibniz, Kafka, Rilke, julga Michel Henry esclarecer a problemática husserliana da Quinta Meditação: a possibilidade de que a percepção não funda mas pressupõe uma raiz na vida transcendental donde o ego nasce, num "Fundo" próprio. E alguns textos inéditos recolhidos nos três volumes da Husserliana consagrados ao problema da intersubjetividade, são ligeiramente referidos como pista de trabalho.

O segundo texto desta terceira e última parte de Phénoménologie Matérielle de Michel Henry, surpreende um pouco pela positiva o leitor, com uma interessante e original reflexão consagrada à comunidade, partindo de pressupostos fenomenológicos. À guisa de sumário são apresentadas quatro questões de trabalho que podem resumir-se, numa média temática por assim dizer, no seguinte: o que é a realidade que "é" em comum numa comunidade e como se dá ela aos seus membros?

A essência da comunidade é a vida. Por sua vez, a vida define-se como "auto-donação num sentido radical e rigoroso, neste sentido em que é ela que dá e que é dada" (p.161). E nós, subjetividade absolutas, fazemos parte desses “dons" (!). Por seu lado, a ipseidade constituir-se-á enquanto algo de real, afetivamente real: a identidade do afectante e do afetado - não uma essência ideal ou correlato de uma intenção eidética. Em suma, a subjetividade é o principium individuationis. Na verdade, qualquer sistema político que queira anular o indivíduo numa totalidade é uma mera abstração. O indivíduo é o modo próprio de "atualização fenomenológica" da vida.

O "grande mistério" é saber explicar o porquê da intencionalidade "perceber o que se mostra no mundo como sendo um ego e lhe conferir o sentido de ser tal" (p. 165). A filosofia ocidental, polemiza o autor, pouco disse sobre os membros da comunidade, nomeadamente a partir do momento em que a metafísica moderna se centrou na representação: "eu represento algo como eu, como o meu eu ou como o teu. Por que aquilo que é posto à frente é meu ou teu?" Nada se sabe... segundo M. Henry - talvez a categoria de um tu absoluto resolvesse o (suposto) problema!?...

Socorrendo-se ecleticamente de autores como Kant, Scheler, Nietzsche, Freud, este professor pretende construir uma grelha fenomenológica base para interpretação do fenômeno da comunidade. Com Scheler, por exemplo, descobre-se uma "minúscula nuance" em relação a Husserl: foi Scheler que deu um sentido mais radical à fenomenologia do "Da-sein" como "Mit-sein", porque lhe conferiu o verdadeiro sentido patético. Foi Scheler que, contrariamente a Husserl, de modo inaudito realizou uma percepção “stricto sensu” da realidade psíquica: conceitualizou que ao se perceber o "corpo do outro" se percebe igualmente o "seu psiquismo" (p.169). E ainda a título exemplificativo, com a psicanálise do inconsciente freudiano (daquilo que se encontra fora da experiência e como tal nada é), com exemplos muito ligeiramente tratados (como a hipnose; as nefroses de transfert; as associações; etc.), pretende-se transmitir a idéia de um complexo processo de formação da comunidade humana, de que o "inconsciente" freudiano (assim como também o "animal" de Nietzsche) se mostra apenas como etapas.

A essência da comunidade confere-se a partir da imediação. A sua essência é a afetividade, o sofrer - com: é o "pathos-com" que cumpre a forma mais excelente de toda a comunidade possível. Numa bela frase do autor: "como um destino de pulsões e de afetos".

NOTAS

1. Relembremos que o § 85 de Ideen I, de Husserl, intitulado hylé (sensual), morphê intencional", apresenta a caracterização da hylé enquanto constante dos objetos na consciência do mesmo modo que a intencionalidade os movimenta. A hilética estará para a noética como a matéria para a forma. Num sentido mais radi-
cal a hylé corresponde à Urkonstitution do eu (à consciência do tempo portanto).

2. O § 86 de Ideen I, de Husserl, intitulado "Os problemas funcionais", trata da inseparabilidade dos aspectos noemáticos e funcionais da própria fenomenologia: a função, algo de absolutamente original, é fundada na essência pura das noeses.

3. O § 97 da mesma obra de Husserl, intitulado "Que os momentos hiléticos e noéticos são momentos reais do vivido, e os momentos noemáticos não-reais", explora, de modo mais sistemático, toda a dialética existente entre a hylé e o noema.

4. Neste caso teríamos, inclusive, de refletir, partindo de Husserl, acerca do valor que, para a teoria do conhecimento, a própria objetualidade possui. Pois, "do ponto de vista fenomenológico real (reell) [isto é, o conteúdo da consciência na sua imanência (o efetivamente vivido), diferentemente do termo alemão «real», isto é, a transcendência própria à coisa ou à realidade] a objectualidade ela mesma, nada é", embora seja "transcendente ao ato", "Für die reell phänomenologische Betrachtung ist die Gegenständlichkeit selbst nichts; sie ist ja, allgemein zu reden, dem Akte transzendent" (Logische Untersuchungen, V, § 20, p. 427).

De fato, para a fenomenologia pouco importa a idealidade, a verdade, a realidade (natural), a possibilidade ou a impossibilidade da objectualidade, conquanto que se admita que é "sobre ela que o ato é dirigido" (id. ibid.).

O FILÓSOFO

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